Este artigo foi extraído da aula magna ministrada por María de los Ángeles Villegas García, Magistrada da Sala Penal do Tribunal Supremo, no dia 17 de outubro de 2025, na Escola de Práticas Jurídicas da Universidade Complutense, durante o primeiro seminário do Curso de Diploma de Alta Especialização em Direito Penal Econômico, do qual sou aluno.
Durante séculos, o direito penal foi regido pelo princípio "Societas delinquere non potest" (uma corporação não pode delinquir). As corporações eram consideradas "invisíveis, imortais" e sem "alma", existindo apenas pela vontade do Direito. No entanto, essa visão foi superada, dando lugar à possibilidade de que as pessoas jurídicas sejam penalmente responsáveis, em um contexto em que a abordagem global busca passar do "Too big to fail" ao "Too big to jail".
O marco regulatório essencial para a responsabilidade penal das pessoas jurídicas (RPPJs) na Espanha encontra-se no Artigo 31 bis do Código Penal (C.P.). Esse sistema baseia-se na prévia constatação da prática de um delito por parte de uma pessoa física integrante da organização. A regulamentação atual evoluiu significativamente após reformas como a introduzida pela Lei Orgânica 1/2015 (LO 1/2015).
Embora existam modelos de imputação como a heterorresponsabilidade (transferência de responsabilidade da pessoa física) e a autorresponsabilidade (responsabilidade por um injusto próprio da entidade), a jurisprudência da Sala Penal do Tribunal Supremo (TS) adotou um modelo baseado na autorresponsabilidade..
A teoria dominante centra-se no delito corporativo. O fundamento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas (RPPJs) não se encontra em uma transferência automática do fato cometido pela pessoa física, mas sim na existência de um injusto por fato próprio, amparado em um defeito de organização.
O juízo de autoria da pessoa jurídica exige que a acusação prove a prática do delito pela pessoa física e, além disso, demonstre que tal delito foi possível pela concorrência de um delito corporativo, ou seja, por um defeito estrutural nos mecanismos de prevenção exigíveis à pessoa jurídica. Esse descumprimento dos deveres de supervisão deve ser grave para ativar a responsabilidade penal.
As pessoas jurídicas serão penalmente responsáveis nos casos previstos no Código, quando se cumprirem certos pressupostos relativos à ação da pessoa física e ao benefício corporativo:
A responsabilidade surge de crimes cometidos em nome ou por conta da entidade, e em seu benefício direto ou indireto, por dois grupos de pessoas:
Dirigentes ou Representantes (Art. 31 bis. 1 b) CP): Representantes legais ou aqueles autorizados a tomar decisões em nome da pessoa jurídica, ou que detenham poderes de organização e controle dentro dela.
Empregados ou Subordinados (Art. 31 bis. 1 a) CP): Aqueles que, estando submetidos à autoridade dos dirigentes, puderam realizar os fatos por ter havido grave descumprimento dos deveres de supervisão, vigilância e controle.
A responsabilidade penal da pessoa jurídica é independente da responsabilidade da pessoa física. O fato de que a pessoa física não tenha sido individualizada, tenha falecido ou tenha se furtado à ação da justiça não exclui nem modifica a responsabilidade penal da pessoa jurídica (Art. 31 ter CP).
A pessoa física deve atuar em benefício da entidade, buscando proporcionar qualquer tipo de vantagem ou proveito direto ou indireto, ainda que este não se concretize finalmente. O benefício refere-se a qualquer espécie de vantagem, inclusive de simples expectativa, ou relacionada a aspectos como a melhoria de posição em relação a outros concorrentes. É fundamental que o crime cometido seja a origem ou causa, direta ou indireta, do benefício ou interesse da entidade.
O fundamento da responsabilidade da pessoa jurídica é a falta de controle e vigilância. Portanto, a existência de um modelo de organização e gestão eficaz é o elemento que pode excluir ou atenuar a responsabilidade.
A pessoa jurídica ficará isenta de responsabilidade se cumprir com as condições estabelecidas, especialmente quando se trata de crimes cometidos por empregados (Art. 31 bis. 2 CP):
O órgão de administração adotou e executou com eficácia, antes da prática do crime, modelos de organização e gestão (Programas de Compliance) adequados para prevenir ou reduzir significativamente o risco de delitos.
A supervisão do modelo foi confiada a um órgão da pessoa jurídica com poderes autônomos de iniciativa e controle.
Os autores individuais cometeram o crime burlando fraudulentamente os modelos de prevenção.
Não houve omissão ou exercício insuficiente das funções de supervisão por parte do órgão de controle.
Para as pessoas jurídicas de pequenas dimensões, as funções de supervisão podem ser assumidas diretamente pelo órgão de administração.
Os modelos de organização e gestão devem cumprir os seguintes requisitos:
Identificar as atividades em cujo âmbito possam ser cometidos os crimes a prevenir.
Estabelecer protocolos ou procedimentos que concretizem o processo de formação da vontade, adoção e execução de decisões.
Dispor de modelos de gestão de recursos financeiros adequados para impedir delitos.
Impor a obrigação de informar sobre possíveis riscos e descumprimentos ao órgão de vigilância.
Estabelecer um sistema disciplinar que sancione o descumprimento das medidas do modelo.
Realizar uma verificação periódica e sua modificação diante de infrações relevantes ou mudanças na organização.
❗ É importante notar que a inexistência de um plano eficaz de compliance é considerada um elemento negativo da responsabilidade, e o ônus da alegação desse fator excludente recai, em princípio, sobre a defesa da pessoa jurídica.
Se as circunstâncias de exoneração só puderem ser comprovadas parcialmente, serão valoradas para efeitos de atenuação da pena. Além disso, consideram-se atenuantes as seguintes atividades realizadas após a prática do crime:
Confessar a infração às autoridades antes de saber que o procedimento se dirige contra ela.
Colaborar na investigação apresentando provas novas e decisivas.
Reparar ou diminuir o dano causado antes do julgamento oral.
Estabelecer medidas eficazes para prevenir futuros delitos antes do início do julgamento oral.
As penas aplicáveis às pessoas jurídicas têm a consideração de graves.
O Art. 33.7 do Código Penal estabelece as seguintes penas:
Multa por quotas ou proporcional.
Dissolução da pessoa jurídica (perda definitiva da personalidade).
Suspensão de atividades (máximo de cinco anos).
Encerramento de locais e estabelecimentos (máximo de cinco anos).
Proibição de realizar atividades no exercício das quais foi cometido o crime (temporária, máximo de quinze anos, ou definitiva).
Inabilitação para obter subsídios, contratar com o setor público e usufruir de benefícios fiscais ou da Segurança Social (máximo de quinze anos).
Intervenção judicial para salvaguardar os direitos dos trabalhadores ou credores (máximo de cinco anos).
As penas como o encerramento temporário, a suspensão de atividades e a intervenção judicial podem ser decretadas também pelo Juiz de Instrução como medida cautelar durante a fase de instrução.
✔️É importante destacar que nem todas as pessoas jurídicas estão sujeitas à responsabilidade penal das pessoas jurídicas (RPPJs), já que as disposições relativas à RPPJs não se aplicam ao Estado, às Administrações públicas, aos Organismos Reguladores, às Agências e às Entidades públicas Empresariais, entre outros.
O Código Penal espanhol contém um catálogo limitado de crimes que podem ser atribuídos às pessoas jurídicas (por exemplo: tráfico ilegal de órgãos, tráfico de seres humanos, fraudes, branqueamento de capitais, crimes contra a Fazenda Pública e a Segurança Social, corrupção, e muitos outros crimes económicos e ambientais). No entanto, a crítica doutrinária tem assinalado a ausência de certos crimes na lista, como os crimes contra os direitos dos trabalhadores, que são tratados mediante a imposição de penas aos administradores ou medidas do Art. 129 CP, mas não se imputa à pessoa jurídica como responsável penal ao abrigo do Art. 31 bis.